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quarta-feira, 29 de junho de 2011

A matutinha conheceu o mar.


Brigite vivia no Reino Encantado de Mucinho, mas de encanto ela conhecia bem pouco.
Magra, pele-e-osso, faminta, sozinha, doente e no cio. Tinha aproximadamente um ano e meio de idade.
Não consegui deixa-la, e num piscar de olhos ela me adotou.
Foi se chegando sorrateiramente com seus olhos assustados, com toda a sua fragilidade, e então, como num conto de fadas, ela agora faz parte de minha família de terráqueos.
Trazida do interior, Brigite nunca tinha andado de elevador, nunca tinha andado de carro, nunca tinha tomado um banho, nunca tinha ido ao veterinário, nunca tinha comido ração, nunca tinha usado coleira, nunca tinha dormido numa almofada, nunca tinha visto o mundo do nono andar de um prédio.
Tudo era novidade, e tudo ela experimentava com os olhos arregalados, mas com o coração de quem quer muito confiar e ser amada.
Aos poucos Brigite se acostumou à rotina de uma cachorra com dono.
Aprendeu que tinha um nome, que tinha um lugar para ficar, que tinha segurança para dormir toda a noite.
Mas ela nunca tinha visto o mar.

O mar, a imensidão azul com horizonte reto.
O mar... que desperta espanto em gente e bichos que não são mais tão crianças.
Sim, porque as criancinhas pequenas não se espantam com imensidões, talvez por ainda carregarem a imensidão de sonhos.
Mas os mais velhos são fisgados por uma mistura de medo e êxtase.

E então me recordo de uma história.
Um amigo meu, quando ainda era um simples estudante de medicina, mostrou a imensidão do mar a dois olhos igualmente espantados.
Uma velhinha tinha vindo do interior para um tratamento na capital, e estava internada no Hospital das Clínicas muito doente.
Pressão alta, um coração fraco, ela tinha Doença de Chagas.
Estava morrendo.
Num belo dia ela tinha que ir fazer um exame em um outro hospital, isso era de um certo modo urgente, mas a ambulância que iria transporta-la quebrou. Sem dinheiro, sem parentes, a pobre matutinha não tinha condições de ir.
Meu amigo e mais outro residente se ofereceram para leva-la de carro afinal não custava nada, e ela era tão doce e tão frágil.
Os três entram num fusquinha azul nenê e seguiram pelas ruas de Recife.
Ao chegar ao destino foi-lhes informado que a máquina tinha acabado de quebrar e que o exame não poderia ser feito.

Pois é... eles poderiam ter voltado ao Hospital das Clínicas e esta história terminaria aqui.
Mas meu amigo resolveu que tinham tempo livre e perguntou à velhinha se ela conhecia o mar.
“Não meu filho. Nunca vi.”
“Vamos levar a senhora, mas a senhora não pode contar nada a ninguém sobre isso. E também não pode se emocionar, tem que se comportar.”
“Tá bem meu filho”
Novamente os três entraram no fusquinha e seguiram para a imensidão azul.
Ao chegar à praia ela parou espantada, encantada, feliz.
“Que coisa mais linda meu filho.”
“Quer molhar os pés?”
Foi a pergunta que seu coração ansiava.
Com certeza sempre foi sonho seu conhecer aquele açude do tamanho do mundo.
A velhinha então saiu em disparada para o mar. Jogou-se nas águas salgadas, rindo feito criança. Pulando ondas, jogando água pra cima, gritando de alegria.
"É salgada! É salgada!"
Ria um riso banguelo, num rosto cheio de rugas, sofrido pelo sol e pelo cabo da enxada.
Ria como a criança que talvez nunca tenha tido oportunidade de ser.
Ria e se esquecia de todo sofrimento, da doença, do coração enorme que teimava em parar dentro do peito, da angústia da morte.
Ria molhada de roupa e tudo. Ria, ria, ria.
Misericórdia – pensou meu amigo – esta velha vai morrer e eu vou ser expulso. O coração dela vai parar com toda esta alegria. Como vou explicar que ela morreu no mar?
Mas apesar da preocupação, da morte iminente, da expulsão, ele não pode deixar de ser feliz em ver aquele mágico momento.
Meu amigo sentiu em seu próprio coração que a vida só vale a pena quando é regada da alegria e da verdadeira felicidade desses pequenos momentos tão simples e tão preciosos.
Voltaram para o Hospital, a velhinha toda encharcada, feliz que só ela.
“Entre sem fazer barulho e não conte pra ninguém que viu o mar.”
“Está bem meu filho!”
No outro dia todos sabiam... afinal como conter dentro de si tanta felicidade?
Como explicar, dentro de um hospital, olhos brilhando tanto?
Como deter o riso bangelo que não conseguia deixar seu rosto?
"Eu vi o mar! Eu vi o mar! Eu vi o mar!"
No final o professor até riu da história. Começou a falar como quem vai dar uma bronca, e depois ele olhou para o meu amigo e disse que ser médico é poder, diante da dor e do desespero, conseguir enxergar o paciente como outro ser humano e não como uma doença.
Ainda hoje, depois de tantos anos, meu amigo rir ao lembrar disso. Posso ver em seus olhos o êxtase do momento vivido por ele e por uma velhinha.
Não tem melhor remédio que ser feliz...

Brigite também se encantou, correu, pulou, olhou, cheirou, foi feliz.
E eu pude ver uma matutinha de quatro patas olhar pela primeira vez o mar.

Se um dia puderem, experimentem viver isso.
É mágico!

2 comentários:

  1. Quanta sensibilidade, Fatinha!
    Adorei, mais uma vez!
    Continue escrevendo e nos deliciando com suas crônicas!!!
    Abração,
    Iara Vilela

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  2. Olá, Fatinha! Cá estou. Gostei lá no recando e mais ainda aqui, com as imagens. Abraço grande. Paz e bem.

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